* Artigo originalmente publicado na edição de 26/09/2024 da Carta Capital
Ao escrever “Geografia da Fome” e “Geopolítica da Fome”, Josué de Castro deu nome para aquilo que o povo brasileiro – e vários povos do mundo – experimentava (e ainda experimenta) ao ter o direito à alimentação adequada violado. Temos 80 anos de fome conceituada no Brasil. E pelo menos 524 anos de privação do direito à terra e ao alimento, desde que se iniciaram os processos de dominação europeiacontra os povos originários.
Fazem exatos 20 anos que a Escala Brasileira de Insegurança Alimentar, a EBIA, começou a ser aplicada em inquéritos populacionais no Brasil. A ferramenta metodológica dá a dimensão dos níveis de insegurança alimentar vividos nos territórios brasileiros. O modo mais severo – a insegurança alimentar grave – corresponde à fome.
Com o exílio de Josué de Castro, durante a ditadura militar, passamos 25 anos usando termos como desnutrição, má nutrição, subnutrição. O fenômeno era reduzido ao corpo biológico. Não conseguíamos situar esse corpo biológico no mundo social. Só no final dos anos 1980, sobretudo com a ajuda deHerbert José de Souza, o Betinho, voltamos a pronunciar a palavra “fome”.
Aprendemos com a EBIA, aplicada em pesquisas domiciliares pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) juntamente à Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2004, 2009 e 2013, e à Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) de 2017-2018. Em 2014, as políticas sociais e econômicas dos governos do Partido dos Trabalhadores levaram o Brasil a sair do Mapa da Fome.
Em 2019, durante o governo Bolsonaro, a EBIA deixou de ser aplicada, como também o Censo que deveria ser realizado em 2020 foi adiado no cenário de negacionismo que presidia o país. Em paralelo, o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) – órgão colegiado que assessora a Presidência da República nas políticas públicas referentes ao direito humano à alimentação – foi extinto.
A Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan), nascida em 2012, precisou entrar em cena. É uma entidade de pesquisa cidadã pensada (e tornada possível) pela experiência de representação política construída pelo Consea. Com o fechamento do Conselho, fortalecer a Rede se tornou um imperativo. Os impactos econômicos e sociais vividos durante a pandemia nos exigiram a produção de dados e informações sobre a fome.
Realizamos duas edições do Inquérito de Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19(Vigisan) com o apoio da Ação da Cidadania, da ActionAid, da Ford Foundation, da Fundação Friedrich Ebert Brasil, do Ibirapitanga, da Oxfam Brasil e do Sesc São Paulo. Em 2020, revelamos que 19 milhões de brasileiros passavam fome. Na segunda edição da pesquisa (2021-2022), eram 33,1 milhões que não tinham o que comer. Estava revelada a violação de múltiplos direitos sociais a partir da violação dodireito humano à alimentação.
Alcançamos repercussão na imprensa mundial e nos debates presidenciais de 2022. No Congresso, nas câmaras legislativas, nas universidades, nas filas de supermercados, nas conversas em família. E vem orientando a pauta do governo que tomou posse em 2023. A EBIA voltou a ser aplicada pelo IBGE. Retomamos o acesso a informações sobre a insegurança alimentar nos domicílios gerada pelo governo federal. O Consea retomou suas atividades no primeiro mês de exercício do atual governo. Os resultados da pesquisa de 2023 revelaram que mais de 24 milhões de brasileiros saíram da situação de fome. Uma sensação de alívio!
É preciso aprendermos a mudar a situação de forma consistente para assegurar o direito à alimentação, para a segurança alimentar e nutricional com soberania alimentar. Independentemente do governo de plantão.
E qual é o papel da Rede Penssan nesse atual cenário?
Reunimos pesquisadoras e pesquisadores de todas as regiões do país com trabalhos no campo da soberania e da segurança alimentar e nutricional. Queremos seguir expandindo a pesquisa em temas e territórios.
A Rede Penssan tem voltado o seu olhar para os sistemas alimentares e a mudança climática, com especial atenção para as populações vulnerabilizadas deste imenso país – que nem sempre está em domicílios. De 10 a 13 de setembro, realizamos o 6º Encontro Nacional de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (ENPSSAN) no Rio de Janeiro. Recebemos mais de 600 pessoas de todas as regiões do país – a maior edição já realizada. Discutimos o problema do acesso ao alimento de qualidade – nada além do que está na Constituição no art. 6 e na Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional.
Estamos construindo caminhos para uma pesquisa inédita e necessária direcionada para os povos indígenas do Brasil. Estamos negociando apoio para estar em campo nos territórios amazônicos, e vamos continuar na luta para ter mais financiamento. Temos uma pesquisa em andamento sobre a fomeda população negra em periferias da cidade de São Paulo, e queremos construir uma investigação específica dedicada à população LGBTQIAPN+. Agendas, para o nosso campo, não faltam.
Em julho deste ano, realizamos o 1º Encontro da Amazônia Legal de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional. Criamos pontes significativas com quem pesquisa na Região Norte. Estamos discutindo metodologias para validar uma escala internacional de insegurança hídrica, aplicável no Brasil, a partir, principalmente, dos dados do 2º Vigisan e de uma investigação na bacia do Médio Amazonas – que, paradoxalmente, abriga precariedade de acesso a água e a alimentos, mesmo sendo a maior bacia de água doce do planeta.
O princípio da Rede Penssan é a pesquisa cidadã, que se faz com, para e junto a todos os cidadãos brasileiros. Fazemos ciência para o ser humano, que vive em um bioma, que tem história, que tem tradição, que tem gosto. Produzir conhecimento, no contexto que for, é contribuir para uma sociedade mais igualitária, mais solidária, mais justa e livre da fome.
Que possamos acabar com os anos da fome em um país de abundâncias.