Em um cenário global ainda marcado pelo uso da fome como arma de guerra, eventos climáticos extremos e inflação de alimentos, o Brasil retoma sua posição de referência ao sair do Mapa da Fome da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) após seis anos. A nova classificação consta da edição 2025 do relatório O Estado da Segurança Alimentar e da Nutrição no Mundo (SOFI), lançado nesta segunda-feira (28), em Adis Abeba, na Etiópia, durante o segundo Momento de Revisão da Cúpula das Nações Unidas sobre Sistemas Alimentares (UNFSS+4).
A Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan) celebra a retirada oficial do Brasil do Mapa da Fome. Segundo o relatório da FAO, o Brasil voltou a registrar uma taxa de subalimentação inferior a 2,5% — patamar de corte utilizado para definir se um país figura ou não no Mapa da Fome. A última vez que o Brasil havia deixado essa classificação foi em 2014. A reincorporação ocorreu em 2019, após retrocessos nas políticas públicas de segurança alimentar e nutricional.
A saída do Brasil da lista da FAO é atribuída à retomada de políticas estruturantes e emergenciais de enfrentamento da fome, em especial a recomposição de programas como o Bolsa Família e o Programa Nacional de Alimentação Escolar, a valorização do salário mínimo, o crescimento do emprego formal e o apoio à agricultura familiar. “Estamos colhendo os frutos de uma reconstrução desafiadora, mas necessária, da política de segurança alimentar e nutricional no país. Voltar a sair do Mapa da Fome é um marco, mas também um alerta: a manutenção dessa conquista exige compromisso político contínuo”, afirma Silvia Zimmermann, coordenadora da Rede Penssan.
A Rede Penssan é a entidade de cientistas que, ao lado de importantes organizações da sociedade civil, manteve a série histórica da pesquisa domiciliar em segurança alimentar no Brasil durante os anos da pandemia, período em que o então governo federal havia deixado de aplicar a Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA) nos inquéritos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Desde então, a Rede vem assumindo papel central na produção de conhecimento com base na pesquisa cidadã e vem atuando como verdadeiro observatório dos dados sobre a fome no país — por meio de seu Grupo de Trabalho de Monitoramento — e também do acompanhamento crítico das políticas públicas em segurança alimentar como um todo.
Fome ainda atinge milhões de brasileiros
Embora os dados do relatório SOFI apontem avanços significativos na redução dos índices de insegurança alimentar, o problema da fome permanece no Brasil. Fazer frente à fome exige uma abordagem mais efetiva e dedicada a grupos mais vulnerabilizados. Segundo os dados obtidos pela aplicação da Escala de Experiência de Insegurança Alimentar (FIES) — utilizada pela FAO desde 2014 em mais de 140 países, inclusive o Brasil — cerca de 7 milhões de brasileiros ainda vivem em situação de fome. O número representa uma queda de 50% em relação ao triênio anterior (2021–2023), quando o total era de aproximadamente 14 milhões.
Os dados da SOFI foram obtidos por meio da pesquisa Gallup World Poll. Indicam que 3,4% da população brasileira sofreu com restrição severa de acesso a alimentos entre 2022 e 2024. Ainda segundo o relatório, 13,5% da população está em situação de insegurança alimentar moderada ou grave.
Entendendo os indicadores: FIES e EBIA
As estimativas divulgadas pela FAO têm base em dois indicadores distintos. O primeiro é a Prevalência da Subalimentação (PoU), que determina a presença de um país no Mapa da Fome. O segundo é a FIES (Food Insecurity Experience Scale), que mede a experiência vivida de insegurança alimentar em dois níveis: grave e grave + moderada.
No Brasil, outro indicador é amplamente utilizado: a Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA), aplicada pelo IBGE desde 2003 e pela Rede Penssan no inquérito VIGISAN. A EBIA é baseada em entrevistas presenciais e distingue três níveis de insegurança (leve, moderada e grave) no domicílio.
De acordo com os dados mais recentes da EBIA, em 2023, a prevalência de insegurança alimentar grave no Brasil foi de 5%. A diferença em relação aos 3,4% estimados pela FIES decorre principalmente dos diferentes critérios de corte de classificação da segurança/insegurança alimentar entre as duas escalas. Ainda assim, quando se observa o total da população em insegurança alimentar moderada e grave, os resultados são similares: 13,5% pela FAO e 11,6% pela EBIA.
Desigualdades persistem
A Rede Penssan alerta que, apesar da melhoria nos indicadores gerais, a fome segue afetando de forma desproporcional os grupos mais vulnerabilizados da população, com recortes marcados por raça, gênero, território e classe social. A permanência dessa desigualdade demanda atenção permanente, tanto na formulação de políticas públicas quanto no monitoramento das condições de vida.
Para Ana Maria Segall, pesquisadora do Grupo de Trabalho de Monitoramento da Rede Penssan, “o enfrentamento da fome precisa estar amparado por dados que reflitam a realidade brasileira, com capacidade de identificar quais são os segmentos da população mais afetados. Os dados internacionais são de extrema importância, sobretudo porque corroboram as informações nacionais e ainda permitem comparabilidade ao longo do tempo e entre diferentes países. As pesquisas nacionais, tanto as do IBGE quanto às realizadas pela Rede Penssan com uso da EBIA, cumprem um papel insubstituível ao identificar, com precisão científica, os grupos sociais com maior risco de convivência com a fome. Assim, é possível que o governo planeje políticas direcionadas às pessoas mais vulnerabilizadas”.
Rumo aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável
Com a saída do Mapa da Fome e a queda nos índices de insegurança alimentar grave, o Brasil se reposiciona na trajetória para alcançar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) até 2030, especialmente o ODS 2, que visa acabar com a fome, alcançar a segurança alimentar e a melhoria da nutrição e promover a agricultura sustentável.
A Rede Penssan destaca que o êxito brasileiro no enfrentamento da fome é resultado da ação coordenada de políticas públicas e da atuação de redes de pesquisa e monitoramento, mas adverte que a conquista ainda é frágil. “É fundamental blindar os avanços conquistados contra interferências externas injustificáveis ou retrocessos internos. O direito humano à alimentação suficiente e saudável é uma condição básica de dignidade e cidadania, que precisa ser garantida”, conclui Zimmermann.
Sobre a Rede Penssan
Formada em 2012 e formalizada em 2017, a Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional — a Rede Penssan — reúne pesquisadoras e pesquisadores dedicados à promoção da soberania e segurança alimentar e nutricional em todo o Brasil. Nos últimos anos, tornou-se protagonista no debate nacional e internacional sobre o tema, sobretudo pela realização de pesquisas de referência, como os Inquéritos Nacionais sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia de COVID-19 no Brasil — VIGISAN I e II.