Milton Rondó: ‘Estado terrorista de Israel mata até de sede’

Diariamente morrem de sede cerca de 6 mil crianças. Os noticiários nada referem. É como se 10 aviões Boeing caíssem diariamente e causassem a morte de todos os passageiros. Seguramente, semelhante desastre ocuparia a primeira página de todos os jornais. Evitar-se-ia também que cerca de 18 milhões de meninos/meninas deixassem de ir à escola por serem obrigados/as a buscar água de 5 a 10km de distância de suas casas”
Leonardo Boff

Nosso primeiro alimento é a água.

Os seres humanos somos constituídos em, aproximadamente, 70% de água.

Em “Virtudes para um outro mundo possível” (editora Vozes), Leonardo Boff retoma as conclusões de Josué de Castro sobre a gênese da fome: “O flagelo da fome não constitui, propriamente, um problema técnico. Existem técnicas de produção de extraordinária eficácia. A produção de alimentos é superior ao crescimento da população mundial. Mas eles estão pessimamente distribuídos. 20% da humanidade dispõe para seu desfrute de 80% dos meios de vida. 80% da humanidade deve se contentar com apenas 20% destes recursos vitais.”

Naquela mesma obra, Boff precisa: “…há uma corrida mundial para a privatização da água. Surgiram grandes empresas multinacionais como as francesas Viventi e Suez-Lyonnaise, a alemã RWE, a inglesa Thames Water e a americana Bechtel, entre outras. Criou-se um mercado das águas que envolve cerca de 100 bilhões de dólares. Aí a Nestlé e a Coca-Cola estão fortemente presentes, buscando comprar fontes de água mineral por toda a parte do mundo. A partir do ano 2000, a renegociação da dívida e dos novos empréstimos a 40 países foi condicionada pelos organismos de financiamento como o FMI e o Banco Mundial à privatização da água e de seus serviços. Assim aconteceu com Moçambique em 1999 como condição para receber 117 milhões de dólares. O mesmo foi tentado com a Bolívia em 2000, obrigada a privatizar a água da cidade de Cochabamba. A empresa americana Bechtel comprou as águas e elevou os preços em 35%. A reação organizada da população foi tão forte e eficaz que obrigou a empresa a abandonar o negócio e sair do país.”

Vale recordar que aproximadamente 80% da água doce disponível na Terra é “privatizada” pela agricultura, que a consome para a produção, com enormes desperdícios nos pivôs centrais, por exemplo, os quais também degradam seriamente os solos.

Para estabelecer direitos mínimos a todos os humanos e humanas no acesso à água, há exatos 19 anos, no âmbito da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), foram aprovadas as Diretrizes Voluntárias para a realização do Direito à Alimentação.

No parágrafo 16.1 das referidas Diretrizes, lê-se: “Os alimentos nunca deveriam ser utilizados como meio de pressão política e econômica.”

Entretanto, o que assistimos em Gaza? Exatamente essa prática, por parte de Israel, país que historicamente menospreza todas as resoluções da ONU, por contar com o apoio irrestrito dos Estados Unidos da América (EUA) e demais países do Norte, ocidental.

Como nunca, desde a Segunda Guerra Mundial, toda uma população está sendo alvo da deliberada utilização da fome como arma política, de forma, ilegal, ilegítima e contrária a todos os princípios mais basilares do direito humanitário.

A vítima tornou-se o carrasco, não sendo mais possível distinguir as práticas atuais da extrema-direita israelense daquelas nazistas e fascistas, do século passado.

Convém notar que na base dessa brutalidade está o racismo do estado sionista, que relega os habitantes originários, os palestinos, ao apartheid racista, mais violento e odioso do que aquele que vigorara na África do Sul.

Para perpetrar esse genocídio, as vítimas são apresentadas como terroristas, desprovidas de sentimentos humanos, animais, como chegou a qualificá-los o ministro da defesa israelense.

Não usaram os nazistas e os fascistas esse mesmo método de desumanização?

Não foi assim também que o “Ocidente” legitimou a dominação sobre indígenas e negros até o século retrasado?

Em última instância, não é esse autodenominado “Ocidente” o responsável indireto pelas atrocidades cometidas por Israel contra os palestinos e palestinas, matando-os de sede e fome e, assim, descumprindo as regras básicas da convivência internacional?

A que servem a ONU, a FAO e outros organismos internacionais quando seus documentos e princípios são violados à vista de todos, impunemente?

Em “Franz Fanon: um retrato” (editora Perspectiva), Alice Cherki nota: “Não é segredo para ninguém que hoje em dia a globalização econômica gera um aumento das desigualdades tanto no interior das sociedades ocidentais como entre os países do ‘Norte’ e os do ‘Sul. O ‘Ano V’ e ‘Os Condenados da Terra’ [obras de Fanon] não são textos ultrapassados quando optamos por lê-los como um apelo ao futuro e ao que ele poderia nos trazer. Eles só parecem datados se lidos no modo indicativo, como meras afirmações. Se compararmos a sua exortação com as análises dos peritos ‘soft’ do realismo político e com o espetáculo oferecido da renovação de horrores, de que lado está a violência? Sobre quem recai a culpa pela aniquilação da política? Hoje, evoca-se constantemente a queda das ideologias, o fim das utopias políticas. Nem por isso, o sonho e a dimensão trágica da condição humana estão mortos. No entanto, o sonho e o trágico são excluídos das nossas modernas sociedades ‘democráticas’, que, em nome da eficácia e da competência, não lhes concedem nenhum lugar na esfera pública.”

Só resta reivindicar que o direito à água e à terra se torne direito humano para cada um e cada uma habitante da Terra, já.

Autor: Milton Rondó (milton.rondo@gmail.com)

Diplomata aposentado, foi secretário socioeconômico do Instituto Ítalo-Latino Americano, vice-presidente do Comitê Consultivo do Fundo Central de Emergências da ONU e representante, alterno, do Itamaraty no Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional – CONSEA, de 2003 a 2016.

(*) Este texto não representa, necessariamente, a opinião do conjunto de gestores e filiados da Rede PENSSAN

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